Textos
English original after the Portuguese translation
* ORAÇÃO E MUDANÇA
de “Cartas de Uma Judia a Um Pastor”
© Dalva Agne Lynch
Querido Pastor,
Aprecio suas palavras sobre sentir pena e orar por aqueles que sofrem, para que eles se convertam e se voltem ao Senhor. Aprecio, mas não concordo muito.
Veja bem: multidões de pessoas sentem pena de outros e oram pela sua salvação, mas só sentir pena e orar não ajuda nada. O que ajuda mesmo é a própria mudança interior, que leva a uma mudança de atitude, a qual provoca mudanças ao nosso redor.
Ao mesmo tempo, muitas pessoas se dão conta da necessidade desta mudança interior, e oram para que isto aconteça. Daí elas se acalmam, confiantes, porque, a seu ver, entregaram tudo nas mãos do Senhor, e é a Ele que cabe fazer alguma coisa.
Bom, o problema é que o Senhor não muda ninguém - nós é que mudamos a nós mesmos. E mudamos apenas a nós mesmos. Não podemos mudar outra pessoa, a não ser interferindo com sua vontade, o que só pode ser conseguido através de algum tipo de coerção.
Ao contrário de todos os demais seres, fomos criados com a dádiva suprema e única do livre arbítrio, a livre escolha. Contudo, é mais fácil se esconder atrás das saias de algum deus, algum irmão mais velho, e deixar que ele lute nossas batalhas, enquanto que nós nos sentamos confortavelmente em nossas confortáveis casas em confortáveis sofás, e... oramos.
Não estou minimizando o valor da oração. O que estou querendo dizer é que é fácil orar, principalmente por alguém mais. O problema começa quando somos chamados a colocar mãos e pés em nossas orações, e fazer alguma coisa por esse alguém mais. Como quando uma criança de rua nos pede um sanduíche e dizemos: “Estou orando por você. Siga em paz.”
Seria melhor usar um pouco de honestidade e dizer: “Estou orando por você. Deixe-me em paz.”
Na verdade, a grande maioria só se mexe e estende a mão àqueles que são seus... mmm... semelhantes, completamente ignorando que “semelhante” não é aquele cuja vida é semelhante à nossa, mas sim todos os quem habitam o mesmo planeta que nós.
Estou disposta a respeitar qualquer pessoa, grupo ou instituição, não importa suas crenças, que pratique o servir ao próximo sem colocar uma etiqueta de preço: “Se tu te converteres à minha religião, ao meu modo de pensar, ao meu modo de viver, ao meu grupo, eu te ajudarei.” Esta é uma das razões pelas quais admiro o trabalho das seguidoras de Madre Teresa de Calcutá. Esse pequeno grupo de freiras pratica a ajuda ao próximo incondicionalmente, só porque aquele próximo tem um corpo e uma mente e um espírito.
Geralmente as pessoas, por mais bem intencionadas que sejam, não percebem que qualquer mudança que esperam ocorrer em alguém mais deve vir do mais profundo interior daquela pessoa, e da mais completa convicção, e que ninguém, mas ninguém mesmo, verdadeiramente muda, se esta mudança veio por qualquer espécie de coerção ou pressão, por menor que seja.
Quem verdadeiramente muda, muda porque está convencido de que algo está errado, e quer fazer algo a respeito, e não porque tem medo, seja do inferno, seja da opinião dos outros, seja de perder sua posição ou seu dinheiro, seja por necessidade de posição ou dinheiro.
Por exemplo: uma pessoa que se torna cristã por puro medo do inferno, ou porque passa a fazer parte de um grupo seleto de ajuda mútua, não teve nenhuma mudança real. Quando o medo desaparecer, ou quando as coisas ficarem difíceis outra vez, ela voltará a ser o que era, e cair nas mesmas rotinas.
Contudo, se ela estava fugindo não por medo do inferno, mas por horror do inferno que percebe dentro de si mesma, sua conversão vai se traduzir em atos de misericórdia, entendimento e compaixão para com outros – e não em algum tipo de auto-justa ira contra o assim-chamado “pecado do mundo”, seja ele qual for. A atitude “eu estou certo e você precisa se converter ao que penso porque o resto é pecado” é a maior prova de que uma pessoa não teve nenhuma mudança real.
Quem muda porque se aproximou do Divino não reflete nenhuma certeza inabalável. Quem verdadeiramente se aproxima do Divino reflete as características divinas: entendimento, misericórdia, compaixão – e elas geralmente vêm, sim, com uma etiqueta de preço: um profundo sentimento de humildade perante a grandeza do Infinito. Qualquer outra coisa é puro ego.
O inferno não está “lá fora”. Está aqui mesmo, dentro de cada um. É preciso que cada um tenha a coragem de descer ao mais profundo abismo de si mesmo, e parar de negar seus demônios interiores, porque é somente encarando o que se é de mais ignóbil, que se tem poder para batalhar e assim vencer, por puro horror, minuto a minuto, por uma vida inteira, o próprio egocentrismo.
O Senhor de forma alguma luta nossas batalhas. Nós lutamos. Ele nos deu a força para lutar, e a luz ao fim do túnel para nos ajudar a ir em frente apesar dos percalços. E não estou utilizando nenhuma figura de linguagem.
Talvez seja por isto que tantas pessoas que chamam a si mesmas de cristãos não passam de egoístas gananciosos que são mantidos sob controle com o chicote do medo. Eles clamam mudança interior para se salvarem a si mesmos, e não para aprender misericórdia. Pergunto-me se eles realmente leram seus próprios Livros Sagrados...
Ao mesmo tempo, quem busca a Luz sempre a encontrará, não interessa como, porque, em realidade, é o Senhor que nos busca, e não o oposto. Nós apenas escolhemos sermos escolhidos. E Eternidade não tem nenhum limite de validade, portanto, nunca poderemos saber se uma determinada pessoa realmente é cega para a Luz, ou apenas está cega para a Luz.
Como então, dize-me, podemos julgarmo-nos uns aos outros, negando misericórdia e ajuda a quem ainda não despertou das garras de seus demônios interiores? Poderemos estar negando ajuda a outro Mateus. Você se lembra de Mateus, no Novo Testamento, amigo? Pois é. Tanto ele quanto Buda não foram chamados a servir depois de terem mudado. Não – eles mudaram depois de terem sido chamados a servir.
Seja como for, tudo começa com apenas uma coisa: o compararmos a escuridão abissal que somos com a Luz do Infinito, e desejarmos, não escapar do que merecemos por tudo o que fazemos de mal (o que se chama JUSTIÇA), e sermos perfeitos e sem mácula aos nossos próprios olhos e aos olhos do mundo, mas sim refletir a Luz perene do Infinito, que se chama ENTENDIMENTO, e se traduz em... MISERICÓRDIA. Para com outros, e para com nós mesmos.
E o que salvará as multidões não vai ser sentarmos e orarmos, seja em solidão, seja em público para atiçar as massas. O que salvará as multidões é que nos levantemos de nossas poltronas confortáveis, e aceitemos todo o labor de sermos aquilo que apenas pregamos: mãos de misericórdia para um mundo sofredor.
Sinceramente,
Dalva
ENGLISH ORIGINAL:
PRAYER AND CHANGE - from "Letters of a Jewess to a Pastor"
Dear Pastor,
I appreciate your words on pitying and praying for those who suffer. I appreciate but don’t entirely agree.
See, multitudes pity others and pray for their salvation, but mere pitying and praying doesn’t do a thing. What helps is a change of heart, which brings a change of attitude, which brings changes in those around us.
At the same time, a lot of people realize that they themselves must have a change of heart and pray for it, but then they leave up to the Lord to do the change. Well, the Lord doesn’t change any ones’ heart. We do. And by the way, that´s all we can do – change our own hearts. We can´t change another person´s heart without interfering with his will, which we can do only through some kind of coercion.
Contrary to all the rest of the Universe, we were created with the supreme and unique gift of free will – free choice. But it’s a lot easier to hide behind a god, a big brother, and let him fight our battles while we comfortably seat in our comfortable homes in comfortable armchairs and… pray.
I’m not minimizing the value of prayer. What I’m trying to say is that it’s easy to pray, especially for someone else. The problem begins when we are called out to put feet and hands to our prayers. Like when a street kid asks for a piece of bread, and we say, “I’m praying for you, go in peace.”
It’d be better to say, “I’m praying for you, go to pieces.”
The truth is that most people are moved into stretching out a hand only to those who are of their own kind, completely ignoring that a “neighbor” is not someone who lives next door in their nice little neighborhood, or seat next to them in their own respectable house of worship, but anyone and everyone who lives in the same planet. I’m willing to respect any person, any group or any institution which practice serving one another without a price tag (“If you’ll get converted to my way of thinking, I’ll help you”). That’s why I respect Mother Theresa´s nuns. They help people unconditionally, just because they have a body and a soul and a spirit.
People are so blind they don’t even see that any changes they expect in someone else have to come from the inside and from the deepest conviction, and that no one, but no one, truly changes if that change was made under any kind of pressure or coercion.
A person who goes through deep changes had those changes because he or she was convinced something was wrong and did something about it, and not just because he or she was afraid – afraid of hell, of other people´s opinions, of losing their position or their money, or because they wanted position or money.
A person who becomes a Christian just because he or she is afraid of Hell, or because she´ll be part of a select group of mutual help, didn´t really have a change of heart. When their fear is gone, or when things become difficult again, they´ll be back where they came from and fall in the same routines.
But if they are fleeing not for fear of Hell, but for fear of the hell they perceive inside themselves, their change will translate into acts of mercy, understanding and compassion towards others, and not in some kind of self-righteous wrath against the so-called “sins of the world”, whatever that means. The kind of attitude that says, “I´m right and you have to get converted to my way of thinking because everything else is a sin” is the greatest proof that a person didn´t have a real change.
When someone touches the Divine he or she doesn´t reflect any unshakeable certainty. He who truly approaches the Divine reflects the Divine attributes: understanding, mercy, compassion – and those attributes do come with a price tag: a deep sense of humbleness before the greatness of the Infinite. Anything else is just meaninless ego trip.
Real conviction is not fleeing to the Lord for fear of Hell’s fire. Hell is not out there, it’s right here inside each one of us. There must be courage to go into the very Abyss of Self, so one will stop denying his inner demons and will face them, and in so doing he will be able to destroy them – minute by minute, day after day, throughout his entire life.
The Lord absolutely doesn’t fight our battles. We fight our battles. He just gives us the strength to fight, and Light at the end of the tunnel to help us keep on going. And I’m not using any figure of speech.
Maybe that’s why so many people who call themselves Christians are kept under the leash only for shear terror of retribution – mostly man’s retribution. They are in it for the bread and the fish, not to learn justice and mercy. It makes me wonder if they truly read their own Holy Books.
At the same time, whoever seeks the Light will find it, no matter what. It’s truly the Lord who first seeks us, not the reverse. We just make choices. And Eternity has no expiration date, so we could never be sure if someone really is blind to the Light or if he or she is only momentarily blind to it.
So how could we judge each other and deny mercy and help to those who didn´t yet wake up from their inner demons´ clutches? We could be denying help to another Matthew. Do you recall Matthew in the New Testament, friend? Matthew, as well as Buddha, weren´t called to serve after changing. No – they changed after they were called to serve.
So, whatever may the situation be, everything begins with one thing: when we compare the abyssal darkness we have inside us with the Light of the Infinite, and we wish not to escape everything we have coming to us due to all we did wrong in our lives (which is called Justice), and to be perfect and blameless in our own eyes and in the eyes of the world, but when we desire with all of our hearts to reflect the perennial Light of the Infinite, which is called Understanding and translates itself into… Mercy. Mercy towards others, yes – but also towards ourselves.
And saving the suffering multitudes will not be accomplished sitting comfortably down and praying, be it alone or in public to entice others. What will save the suffering multitudes is getting up from our comfortable chairs and accepting all the hard work of being that which we claim to be: hands of mercy to a suffering world.
Love,
Dalva
Site oficial da autora: http://www.dalvalynch.net
Endereço da autora da Rede de Escritoras Brasileiras: http://rebra.org/escritora/escritora_ptbr.php?id=1158
Fig: Madre Teresa de Calcutá
Dalva Agne Lynch
Enviado por Dalva Agne Lynch em 11/11/2011
Alterado em 13/01/2016
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