CARTAS PARA CORA - (abril de1999)
₢ Dalva Agne Lycnh
Nota: As cartas para Cora foram escritas enquanto montava a tradução para o português do meu livro Heavenly Elite, a pedido de uma editora que, no fim, recusou-se a publicá-lo porque eu me recusei a escrevê-lo como ficção.
Cora,
Sentada frente ao pc, dedos dançando nas teclas, vivendo no sol e calor do Rio, escrevendo, escrevendo - sobre coisas passadas e doloridas. Um livro pronto (Espectro), afogo-me no seguinte. Por que tudo o que escrevo dói para sair, consome tudo o que tenho por dentro, e constrói uma muralha entre meu mundo e eu mesma?
As crianças vêm até meu escritório, buscando por atenção, contando histórias, compartilhando sensações. Sam traz dois amigos para jogar 007. Joe dá risada de seu cabelo despenteado, da tolice dos professores (a gente sabe tudo, quando se tem 19 anos!). Mer chega chorando, porque tem ortodentista e odeia. Manuel, seu pai, quer que eu a leve. Mas como posso largar meu bebê? Leve-a, Manuel. Estou presa, amarrada, acorrentada, irremediavelmente escravizada às palavras que estão jorrando, que estão me consumindo... Vê, nem penso nem ouço, sorrio e aquiesço, mas meu todo está no Rio de 1986, com a desesperança que foi a semente do que vivemos agora...
Escuto a Flauta Mágica dos Andes, e fecho a porta contra o mundo. Meu mundo real, que é tão mais efêmero do que as memórias, se desvanece...
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Cora, que não é simples nem tampouco é Cora,
Revisar é fogo. O que eu esperava ver era que, tendo o texto recebido as mais diversas correções, o autor tentasse reescrevê-lo, caso concordasse que o original poderia melhorar. Senão, não faz o menor sentido, a enxurrada de textos que vêm e não voltam.
Escrever não é apenas colocar um monte de coisas no papel, ou na tela, mas trabalhar, esculpir, cinzelar, moldar. É como ter filho: você é pai e mãe desde o momento em que a criança nasce - mas você não vai lançar ao mundo um bebê, e daí dizer: já fiz o que tinha que fazer. Agora a bola está no seu campo. Não - você precisa moldar, cuidar, esculpir o caráter e a mente da criança.
Seu texto é seu filho - você precisa amar apaixonadamente seu texto, mas não ter piedade: corte, construa, limpe, até que ele se levante como uma coisa inteiramente independente de você - liberto de você - pronto para pertencer a outro, ou outra. Como um filho ou filha.
Como já disse: escrever requer coragem.
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Cora,
Recebi meu texto de volta de quem está fazendo o meu copydesk. Ela sugeriu que eu acrescentasse mais "diálogo" nas partes montadas. Passei o dia, então, catando idéias, cortando, colando, corrigindo, traduzindo... finalmente tive que parar, porque o coração doía de tanto ler sobre o "amor que nunca acaba", mas que era pouco e se acabou. Talvez - só talvez - não tenha me distanciado o suficiente para poder escrever a respeito. Todas as dúvidas me assaltam, e sento-me frente ao pc e escrevo, deleto, reescrevo - doendo, doendo. Como se pode doer, quando a mente nos diz "olha, você sente errado"? É correto sentir errado? Aquilo que Mário Quintana chamava de "torto". E, sim, Cora, sinto gosto de mostarda, e cheiro de mostarda, e a cor doentia da mostarda toma conta do horizonte, quando tudo deveria ser lavanda e azul. De repente esqueço todo o sadismo... e tenho saudades do Rio.
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Ah, Cora - que me colocam no mesmo pé que você, quando não me sinto como parte de nada, muito pelo contrário...
E dói. Não tenho o seu conhecimento de vida ou a sua experiência. Só conheço as paredes da minha jaula, que às vezes é dourada, outras vezes cheia de ferrugem resultante de estar exposta às interpéries.
Não, Cora, você escreveu do que conhecia - e conheceu tanto! Eu? Escrevo do mundo limitado da jaula, das minhas mãos esticadas através das grades, das visões meteóricas de rostos e formas que passam por mim, observando o bicho, comentando, atirando, talvez, migalhas, pedaços de sentimento...
Não, Cora, não estou no mesmo rol que você. Nem pseudônimo tenho.
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Cora,
desculpe escrever tanto! De repente estou outra vez andando de um lado a outro - as grades se levantaram, e o tigre enjaulado está pacing the floor, pronto para o golpe.
Desta vez contra algo bem maior.
Comecei a minha pesquisa para a introdução do meu livro, e o assunto é tão horroroso, tão near home, tão presente, aqui e agora, que quero jogar os livros e folhetos e panfletos contra a parede, e quebrar algo.
Como explicar isso a quem quer que seja? Que o passado nunca será passado, que me assalta, estupra meu espírito - e, ainda assim, preciso ficar consciente, e escrever, ESCREVER a respeito do monstro que se me fecha a porta da jaula, e deixa-me pacing the floor, ready to pounce?
Cada coisa que leio, anoto, escrevo, deleto, é parte do desespero, não da história. Quisera escrever versos, contos, artigos, qualquer coisa que não fosse exposées de uma realidade tão terrível.
E daí as pessoas me perguntam: mas Dalva, por que você está tão irritada? O que está havendo com você? Não está havendo, já houve, mas continua, irremediavelmente, ad infinitum.
Quer ver meu inimigo, Cora? Entre em www.thefamily.org. É esse o monstro que se me fechou a jaula. E preciso expo-lo para reconquistar a chave. E o preço, ou o prêmio, será minha linda filha de 16 anos.
Se escrevo bem e convenço, recebo o prêmio. Se falho, pago o preço de perder o tênue fio de comunicação que temos agora, após quase 14 anos de separação. "Write, Mom. You can free her if you write", David me encoraja (David tem 21, ele ainda acredita...).
O que são seus textos, Cora? Os meus são minha chave: se sou boa o suficiente, se me faço ouvida, liberto minha filha. Se fracasso, fecho inexoravelmente a porta que nos separa.
Estou apavorada, Cora...
Dalva Agne Lynch
São Paulo, abril de 1999