IOM KIPPUR
(trecho do livro "Gehinnom" - leve em conta que isto é apenas um trecho, portanto há coisas antes e depois dele)
₢Sarah D. A. Lynch
Agora, Iom Kippur é o dia mais sagrado do Povo da Terra, e isso se reflete em todos nós, o Povo dos Céus. É quando na Terra eles se conscientizam da responsabilidade que carregam dentro de si.
E foi bem aí que comecei aceitar a decisão do Conselho de deixar Airumã só, para que escolhesse. A única maneira de me seguir, quer dizer, ser parte da minha Essência no Povo dos Céus, seria que ela escolhesse, voluntariamente, ser parte da Essência no Povo da Terra. E ela precisava se dar conta da extensão da responsabilidade e do peso daquela escolha. Ela já conhecia o fardo de ser diferente, por ser indígena. Mas ninguém jamais acusara os indígenas de causarem todas as desgraças do mundo.
Sempre foi um perigo fazer parte do Povo. Por mais assimilados que estivessem em uma sociedade, em um país, por mais que muitos dentre eles tentassem esquecer quem eram e se mantivessem à parte dos demais, cada um deles era, e sabia que era, diferente. Não era superioridade racial ou intelectual. Eles tampouco não eram mais espertos que os demais. E não era que não tivessem livre arbítrio, como nós, o Povo dos Céus – apenas esse livre arbítrio estava intrinsecamente entrelaçado, no seu próprio DNA, à obediência aos Desígnios de HaShem, e a não obediência lhes causava profundo turbilhão interno.
Não era surpresa, então, que eles fossem as criaturas mais predispostas a conflitos íntimos de todo o planeta, propensos à depressão, ao questionamento interior, ao tumulto de consciência. E isso resultava em grande atividade artística e científica. O Povo extravasava na criação sua batalha entre livre arbítrio e obediência ao que estava enraizado na sua própria estrutura genética.
Ao mesmo tempo, nas comunidades que não negavam suas raízes, as Leis, as palavras dos Sábios e as tradições milenares eram passadas de pai para filho, de mãe para filha, condicionando-os ainda mais, desde pequenos, a seguir inconscientemente aquela intrínseca cadeia de comando, e a manter uma unidade de defesa mútua. E por isso nenhuma força da Terra, através dos milênios, conseguira destruir sua existência. O Povo inteiro era como um exército, mesmo os mais recalcitrantes.
E tampouco era de se admirar que seu mais sagrado dia fosse Iom Kippur – o Dia da Expiação, que, como já disse, vem dez dias depois do Ano Novo, Rosh HaShanah. Esses dez dias são conhecidos como ‘Dias de Assombro’, os dez dias de Teshuvah – arrependimento.
Para entender a importância cósmica disso tudo, preciso explicar algumas coisas. Veja bem: antes mesmo de que tudo viesse a ser, quer dizer, a Terra e os Céus, logo depois de criar seu próprio Conceito, HaShem trouxe Teshuvah à existência (HaZohar, Tol´dot). E por que seria isto? Porque quando algo é criado, seu oposto também é criado. Luz e sombra. Bem e mal. Matéria e não-matéria. Assim, ao criar a Terra, a sua destruição também seria criada, então era preciso que seu processo de regeneração fosse possível. E a regeneração da Terra dependeria daqueles que eram os únicos capazes de destruí-la: os humanos. Não os animais, não as plantas, não os minerais.
Então, antes mesmo que tudo existisse, HaShem trouxe para os humanos o arrependimento. E como os humanos se rebelaram, Ele separou para si um Povo, e entregou a eles o fardo.
Os dez dias de Teshuvah, quer dizer, de arrependimento, culminam com a expiação – o pedido de perdão. Ao pôr-do-sol, ao acender as velas saudando o início do novo dia, a Luz da Shekinah rompe as trevas dos erros humanos, para levar até HaShem os pedidos de perdão de Seu Povo. Então eles têm a oportunidade de trazer de volta à existência tudo o que fora destruído. E é por tudo isso que não se pede perdão apenas pelos próprios erros, mas também pelos erros da Nação e os erros do Mundo. Afinal, o destino da Terra está, e sempre estará, nos rogos do Povo do Verbo Impronunciável, que carrega o fardo da Teshuvah.